Ensanche de Vallecas, mais uma miragem financeira global

2012, Vallecas, Madrid, Espanha, Europa. O bairro, situado na porção sudeste da capital espanhola, abriga um tipo de “paisagem” que tem se tornado uma constante mundo afora: as “miragens financeiras”, para desviar uma expressão cunhada pela Mariana Fix.

Por quê miragem financeira é o que trataremos nesse breve ensaio fotográfico-textual, que teve inspiração em exposição de Hans Haacke, “Castillos en el aire” – se fosse na quebrada, a exposição chamaria: “firme como prego na areia”. A idéia é essa. Mas, com todo respeito ao artista, não acreditamos que a simples regulação do mercado resolva, ou que existam capitalistas bons e maus: a especulação É o capitalismo, não há capital bom ou ruim, ele simplesmente é isso.

Chega-se em Vallecas de metrô, pela linha 1. O último trecho dessa linha, de “La Gavia”, “Las suertes” e “Valdecarros” é novíssimo, foi inaugurado em 2007. E está no fim da cidade. Na realidade, pode-se dizer que o metrô e a infra-estrutura chegaram antes mesmo de existir cidade no lugar. Mais, que a infra-estrutura antecipou de forma especulativa o que só existia como espectativa de lucro

Mas essa acima é outra estação, em “Alto de Arenal”, mais na “quebrada” de Vallecas, que é um bairro habitado por anti-franquistas, proletários (antigamente), e hoje por imigrantes e espanhóis mais pobres que a média. Foi bombardeado pela força aérea nazista durante a guerra civil espanhola. Mas desse antigo bairro, nada vi, só remodelação atrás de remodelação.

Excetuando seu centro imediado, Villa de Vallecas é um mar de conjuntos habitacionais padronizados. Nessa rua o que me espantou foi a aparência quase de favela mesmo, só que na sua versão institucionalizada. Os tijolos vermelhos, o morar empilhado e sobretudo a ordem, ordem ordem. Normatização no morar, já que muitos dos antigos bairros construídos pelxs próprixs moradorxs de Madrid foram removidos para dar lugar a “conjuntos habitacionais” como esse. Isso foi nos anos 1960, 1970 e 1980, quando o Estado era o principal construtor.

No entanto, no final do século XX e início do século XXI, a Espanha “deixou” de ser uma das economias mais atrasadas da Europa para ser uma “potência”. Construção de estradas, trens rápidos, metrô etc. E sobretudo muito, mas muito crédito, muito possivelmente propiciado pelos bancos e empresas estatais latino-americanas liquidadas a preço de banana durante ou após os “ajustes estruturais” que se seguiram à crise da dívida dos anos 1980. Do mesmo modo como Brasil, Rússia, Argentina e México agora posam de “surfistas” na onda da atual crise das dívidas européias, Espanha e outros países surfaram na crise das dívidas do terceiro mundo enquanto a encrenca aparentemente estava só pelas nossas bandas.

Ensanche de Vallecas foi totalmente planejado. Situa-se no marco das grandes construções estimuladas pelo poder público em fins da década de 1990, tendo sido iniciado a partir de meados de 2004. Nada se parece com o aspecto “BNH” da foto anterior, porque foram diversas construções privadas . E quem mora na cidade que já existia, de repente vê surgir a “paisagem” abaixo:

Ou então, “bonitezas” da arquitetura “pós-moderna” como essa coisa hedionda abaixo:

Alguns anos atrás, a vista era forrada de guindastes

a foto veio daqui (http://www.flickr.com/photos/75289561@N00/305102477) sem a devida autorização, mas que o copyrights vá pras cucuias, especialmente se é pra contar uma história como essa

E deu nessa coisa que parece uma “Brasília”, com vários e vários terrenos vazios no meio:

E assim, onde antes havia campos de trigo ou de qualquer outra coisa que pra gente é indiferente, foi erguido um bairro inteiro, como parte do “milagre econômico” espanhol. Metrô, avenidas largas, praças, infra-estrutura completa provida pelo Estado. E estímulos para megaconstruções residenciais e comerciais.

Só que em dado momento a coisa engripou. De modo semelhante à crise imobiliária dos EUA, na Espanha o crédito servia tanto à construção como para o consumo, e a perspectiva de ganho futuro (na prática impossível), as dívidas de consumidorxs, eram comercializadas como letra de alto risco. Não demorou para que o “castelo de ar” simplesmente evaporasse:

Em alguns casos, são apenas descampados. Noutros, estruturas de ferro “habitam” o que era para ser um conjunto de casas, criando uma paisagem meio surrealista.

Surreal, hiperreal. De fato, Hans Haacke explorou uma “piada pronta”, que é o fato de parte das ruas de Ensanche de Vallecas terem nomes de movimentos/correntes da arte do século XX, tais como “Calle Surrealismo”, “Calle Cubismo” etc, ou como a Rua “Arte Conceitual”, abaixo:

Foto da exposição de Hans Haacke sobre Ensanche de Vallecas

No fundo, o hiperrealismo, a essência do aparentemente “ultra-moderno” Ensanche de Vallecas, nada mais é do que isso:

Tais prédios tornaram-se como que um “símbolo” do bizarro que é esse bairro, e são capa da citada exposição.

O bairro (se é que dá pra chamar de bairro) de Ensanche de Vallecas é o tempo todo essa mesmice. Prédios novos, muitos vazios, praças, avenidas, terrenos vazios etc. Muitos prédios subiram, inclusive foram vendidos alguns na sua totalidade. Só que grande parte dos investimentos que seriam feitos não vingou, e apenas placas, ou escombros que não saíram da prancheta.

Entretanto, quando secou o crédito farto, a coisa apertou pra todos os lados. Muitas construtoras faliram; muita gente que trabalhava nas obras (equatorianos, peruanos, paraguaios e latinos-americanos de todas as partes, europeus do leste, africanos árabes, africanos negros etc, e sobreturo espanhóis) ficou sem emprego do dia pra noite. Só que os empregos escassearam não só na indústria da construção, mas em geral. A crise de emprego veio e pegou pra valer. E muitas das pessoas que durante a alta compraram seus imóveis com financiamentos de longo prazo, logo depois ficaram desempregadas, e ainda por cima viram suas dívidas subirem com o efeito dos juros. Durante a caminhada vi uma mulher pregando algo num poste. O adesivo dizia “aulas de inglês”. Ou como aqui nesse coletor de roupas para doação:

Agora, tá vendo aquele papelzinho ali em cima, pequeno, colado nessa caixona?

Anúncios de pessoas tentando vender sua força de trabalho, sem sucesso, estão por todas as partes. Não a toa o desemprego na Espanha passa da casa dos 20%, e até 50% na população mais jovem.

Outro detalhe que revela a impossibilidade de se vender é que os pisos térreos, destinados para o pequeno comércio, quase todos estão assim, lacrados ainda, à espera de alguém que abra uma loja ou coisa do tipo:

Há ainda os prédios inteiros vazios, como esse prédio comercial:

Em lugar de bancos ou salas comerciais, anúncios de assembléias de bairro chamadas pelo 15M, movimento surgido em 15 de maio de 2011. Afinal, muita gente está enrascada com dívidas e sem um puto pra pagá-las.

As mesmas pessoas que ficaram desempregadas estão também sendo despejadas porque pegaram empréstimos não conseguem pagar. A garantia da dívida é o imóvel que elas compraram com o dinheiro emprestado. Só que muitas vezes o valor excede o do imóvel por conta dos juros corridos em cima da dívida… novamente tomamos uma foto emprestada da exposição do Hans Haacke, que juntou um monte de processos de hipotecas, em que os bancos despejam as pessoas para proteger o seu crédito (fictício).

Tal tipo de processo é conhecido como “desahucio”, quando um banco executa a hipoteca e toma o imóvel de volta. O resultado é que as pessoas que estão com parcelas atrasadas – porque estão desempregadas – perdem também a casa; mas incrivelmente, continuam devendo. Podíamos dizer que a nota atual segundo uma agência de pontuação de investimentos, não da Espanha, mas das pessoas que nela vivem, é o Triple D: Desempregada, Despejada, Devedora.

Para frear os “desahucios”, foram criadas redes de resistência (Afectados por la Hipoteca, STOP Desahucios) , que consistem em nada mais que juntar gente na porta dos apartamentos aonde uma pessoa vai ser notificada do desahucio, fazer barulho, denunciar da forma como for, e tentar negociar junto ao banco para adiar o despejo. Impedir, a lei não permite… evidente, pois a lei, o Estado servem ao capital. Quem foi que acreditou que servia às pessoas?!?

Esta tentativa de frear um desahucio ocorreu em Vallecas, mas na parte mais antiga, perto do metrô Portazgo.
este desahucio, lo vamos a parar!“que pasa, que pasa, que nos quitan la casa!”

Para sorte da senhora da janela, este desahucio foi interrompido, e ela não foi parar no meio da rua. Por hora…

Mas até o presente, mais de 350.000 processos de execução hipotecária estão em curso em toda a Espanha…

Apartamentos sobrando, pessoas sem-teto. Isso é só mais uma prova de que esse mundo da gente não é pra satisfazer necessidades de ninguém, só do capital no seu movimento automático.

O mais curioso é que me diziam: “cara, você tem que avisar as pessoas lá no Brasil!”. Como se aqui a gente não vivesse processos semelhantes a esses há tempos… =(

Como disse Marx há não tanto tempo assim, “A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Pois é, até quando as pessoas acreditarão que dá pra consertar o capitalismo?!?